sábado, julho 22, 2006


Tico apresenta:



“S. Pedro’s Windsurf Sessions II”



Saltando a parte de acordar e deparar-me comigo mesmo, por mais depressivo que possa parecer, consigo arranjar forças para não fechar os olhos de novo de modo a esconder-me da vida, visto-me, preparo todo o material e ponho-me a caminho do mar.
Destino: Praia de S. Pedro.

Condições – Vento fraco e irregular de nordeste. 10% de céu nublado. Mar flat.

Após cerca de uma hora, praticamente, de tentativas de ir para o outside ao largo da Praia de S.Pedro, consegui finalmente apanhar vento limpo, o que me permitiu navegar com contentamento e confiança.
Nesta altura, com a experiência que tenho dos episódios por que já passei, quer bons, quer maus, tudo fazia antever uma tarde para um bom passeio de windsurf.
Devo dizer que foi o maior passeio que já fiz numa prancha que não foi, de todo, talhada para passear com tão pouco vento. Mas eu lá insisto em aprender e passear com "puros sangue"...
Fui até onde me parecia ser significativamente longe para o vento que fazia. O início da Praia da Parede era para mim sinónimo disso mesmo.
A busca por mais vento significava na prática, que me afastava cada vez mais. Não estava a 200 metros da costa mas sim a cerca de um quilómetro.
Um bordo para trás, e a caminho da Praia da Poça, numa bolina folgada.
Ver os barcos a passar e cumprimentar com acenos é um pouco difícil para quem tem que estar com as duas mãos ocupadas todo o tempo, mas o pessoal do mar sabe isso, e por essa razão cumprimentam na mesma.
Ver a costa daquele ponto de vista, vendo as pessoas tais minúsculos pontos remexendo-se lentamente, e deparando com a imensidão do mar que se fazia claramente sentir, dá-nos (às gentes do mar), uma enorme lição de vida, e tamanha apreciação das coisas boas que o planeta azul nos oferece. Pensar que em tempos quase não houve terra, e que no fundo, para lá se caminha, é uma nostalgia severa mas tocante. Não tenho a menor sombra de dúvida de que quando saio para o mar, um dos filmes que tenho mais presente, e que refere esta ideia anterior, é “Waterworld”…
Tudo faria prever que o bom dia e as condições de vento até ali sentidas continuariam assim – moderado, mas certo.
Mas é quando nos julgamos uns lobos do mar, que pensamos conhecer realmente a maioria dos truques e manhas do vento, das correntes, do equilíbrio e da arte de mareação da vela, que a imensidão do mar e a mais englobante força da natureza nos reduz a pedaços insignificantes de nada… Estaria prestes a receber mais uma lição de vida. Estaria preparado?...”

De facto, estava um dia espectacular, e não era a velocidade que não conseguia alcançar que me impedia de me sentir bem. Estava a fazer aquilo que gostava de fazer.
Nem interessava sequer o facto de estar sozinho mais uma vez. Sei que preciso disso de vez em quando, não só para assentar ideias, para tomar decisões importantes, reflectir sobre tudo, mas também para me pôr à prova e descobrir mais um pouco de mim.
Agora, com a praia de S.Pedro de novo à vista, apercebia-me do quão afastado estava. Os pescadores no barquito, que da areia mal se viam, estavam agora a uns 100 metros entre mim e a praia.
É engraçado ouvir as histórias contadas pelos pescadores. Uns são exímios contadores de histórias, prendem qualquer um com o seu carácter castiço e feitio trolha.
Foi pelas histórias contadas por estas gentes do mar que ganhei um grande respeito pelos peixes. Não sei se diria mesmo – medo. Todas as histórias que metiam safios acabavam sempre mal. E o ficar a saber que existem moreias mesmo aqui perto fez-me começar a pensar duas vezes de cada vez que vou mergulhar…
Para conhecer melhor o vento com que navegava, tentei rumar numa bolina mais cerrada. Não conseguia. Era muito pouco vento, e mesmo os cambers caçados para uma boa curvatura da vela eram ineficientes.
Vi que tinha de continuar com a bolina folgada. O que até nem seria tão mau visto inicialmente estar com vontade de ir até à Praia da Poça. A caminho então.

Se há parte menos conhecida da costa do Estoril, eu diria que é a zona entre a praia de S.Pedro e a Azarujinha. Tem mais a ver com o facto de ser inacessível a muita gente do que com o de haver uma parte restrita apenas a pessoal do exército.
É uma falésia não muito alta que acompanha a marginal naquele troço, apinhada de rochas escarpadas. Muitos espaços entre elas constituem verdadeiros desafios ao se tornarem obstáculos interessantes a vencer.
Acordar e ter o mar mesmo à frente é mesmo fantástico.
Quem mora no palacete mesmo à beira da falésia, o das riscas brancas e verdes já deve estar mais que habituado, mas não deixam de ser privilegiados por tão magnífico cenário. Só é pena não terem fácil acesso ao mar. Sei que em tempos, quando Salazar governava, e tomava o Forte de S.João como casa de férias, ainda havia alguma areia na praia privada do forte. Não creio que fosse uma grande extensão, mas devia resumir-se apenas àquele espaço.
Ainda há uma parte, para mim, desconhecida pelo menos a pé, que é a costa entre o bar Alcatruz e a praia da Azarujinha.
E foi precisamente frente ao alcatruz que o vento claramente se esgotava. E já estava cansado. Tinha demorado quase uma hora desde a Ponta do Sal até ao bar mencionado!... Foi custoso mesmo, mas as quebras de vento não me impediram de continuar.
Esta não é de facto uma prancha para tão pouco vento. Mas apesar de saber que estava a ser teimoso, estava a gostar do que estava a fazer.
Numa coisa tinha acertado – a terra firme já não estava a um quilómetro mas a uns 100 metros de distância.
Controlando a posição do sol regularmente, conseguia ter a noção das horas.
Descia rapidamente, e sabia que tinha cerca de uma hora e meia para fazer o percurso inverso, mais junto à costa.
Saber que ia ter ainda menos vento para navegar quebrava-me o ânimo. Descansando e recuperando as forças de tal prova de equilíbrio, estive uns três minutos a pensar. Como não havia corrente ou era esta muito fraca, posso até ter demorado um pouco mais.
Pondo então a cabeça a funcionar, (como se não tivesse estado a usar constantemente até então), pus-me a analisar uma série de factores que iam culminar numa destas decisões:
1 - Desmontar o material e com o máximo cuidado subir para terra firme pelas rochas, indo depois buscar o carro, mesmo de fato vestido?
2 - Tentar continuar mais um pouco, chegar até à Azarujinha, e ir buscar o carro a S.Pedro?
3 – Tentar voltar para trás, esperando que houvesse o mínimo de vento?

Analisando os factores, aqui vai uma amostra do que pensei na altura:
- Em relação à primeira proposta, não só era perigoso como ainda ia estragar a prancha ao bater nas rochas com certeza quase garantida;
- Quanto à segunda, não tinha vento nenhum para tal. E apesar da distância ser muito mais curta que dali à Ponta do Sal, não o iria conseguir pois os edifícios mesmo à beira da falésia criam uma barreira ao vento;
- Se me decidisse pela terceira, sabia que ia enfrentar a mesma dificuldade, talvez até acrescida, agora que o vento estava ainda mais fraco. Mas sabia que se conseguisse manter-me em pé, mareando bem a vela e ganhando alguma velocidade, se essa se mantivesse, conseguiria fazer o trajecto pelo menos até ao final da Praia de S.Pedro em cerca de uma hora se tanto.
Evidentemente, também entram outros factores muito importantes:

História – Em 2000, quando era para ir levar a minha irmã à natação, o Clubman lembrou-se de gastar a gasolina toda. Para qualquer pessoa, o mais natural seria encostar o carro, pegar no bidão de emergência (pois já não era esta a primeira nem última vez que me faria isto) e ir buscar combustível ao posto mais próximo. Deixar o Mini sozinho?!... Vai de empurrar o carro até casa! Desde a Alapraia até à Parede. Coitada da rapariga, era para ir nadar e acabou por fazer musculação… Mas olha até foi bom para os dois. E se nessa altura não tinha deixado o meu Mini sozinho, não o iria fazer agora à minha Explosion.

(Ego de windsurfista – Epah, parti da Praia de S.Pedro, tenho que regressar ao mesmo sítio… )

Subitamente, quando andava perdido no meu brainstorming, vem uma brisa que me despertou imediatamente do transe.
Ainda pensei que fosse uma coisa passageira, mas até estava a durar.
Iço a vela, e ponho-me a caminho da Ponta do Sal.
Às vezes, decisões tomadas de cabeça fria até resultam bem. Não creio que tenha sido o caso até porque essa brisa não durou muito mais tempo.
Fui apanhando uma série de rajadas incertas que me iam impulsionando no rumo certo. Só precisava de estar de pé para quando a rajada viesse, poder aproveitá-la de imediato.

Se há alturas em que um gajo deve rezar, esta era uma delas. Mas não é rezar aquelas cenas da igreja, pessoalmente acho isso tudo uma banhada que nos foram impondo ao longo dos anos. Rituais e manuais usados no sentido de controlar a liberdade de grandes massas para manter a ordem no mundo. Apesar de saber e constatar que é mais natural acreditar em algo que nos transcende mas unicamente no sentido de termos alguém a quem nos dirigirmos quando sós.
Prefiro falar com Ele numa boa, como se fosse com um amigo igualmente radical, mesmo. Posso já não ir à missa, mas não me esqueci do Man, como muito pessoal pensa erradamente.
Lembro-me então que Lhe pedi apenas um pouco mais de vento. Não quis pedir mais nada, ou especificar quanto mais vento precisava. Não, fiquei-me por ali – apenas um pouco mais de vento.
Mas sabendo que o Tipo é muitas vezes um gajo porreiro, fiquei com a certeza de que é um bacano com um sentido de humor de timing impressionante… Posso ter pedido um pouco mais de vento… mas não especifiquei quando… J
E então, a uns 300 metros da Ponta do Sal, o vento cessou por completo.
Uma bóia de sinalização de pescador era a minha irrefutável certeza de que não avançava mais do que nada.
Ter que começar a desmontar o material era agora a prioridade – enquanto havia luz…
O Sol descia a passos largos, estava só e o ar arrefecia.
O fato 3.2 começava a ser ineficaz. Felizmente estava perto da costa, a uns cinquenta metros diria.
Enquanto desmontava o material, reparei que tinha espectadores em terra. Deviam já estar ali há algum tempo. Creio que eram pescadores, mas não posso garantir.
Bem, quando se está com frio, a última coisa que se quer é ficar molhado. Mesmo assim, teria que entrar naquela água fria para poder soltar o cabo do clew, na parte de trás da retranca.
Parecendo habituado, fez-me no entanto recordar o que os passageiros do Titanic sentiram na tragédia de irremediavelmente para a grande maioria, terem de mergulhar naquelas águas gélidas do Atlântico.
Tinha agora apenas cerca de escassos oito minutos – se tanto – para desmontar o material.
Não posso descrever com precisão aquilo que sentia. Ou melhor, aquilo que não conseguia sentir. Creio que o frio era tanto que os nervos já estariam a dada altura em modo de hibernação.
Lembro-me que não tinha forças para simplesmente tirar o cabo da adriça do mordente para poder tirar o mastro e enrolar a vela. Cada tentativa parecia um suplício. As minhas mãos tinham simplesmente estado em tão grande esforço toda a tarde que pareciam querer descansar agora.
Foi então a meio duma dessas tentativas que vislumbrei aquilo que parecia ser uma visão tirada de um sonho. Ou seria de um pesadelo? Porque, enfim – era a polícia, man!… J
E um gajo muitas vezes quando tem um encontro imediato com uma brigada é por razões que nos vão pesar de certeza ou no lombo, de uma valente bordoada, ou então fazer-nos sentir os bolsos mais leves, de uma multa estapafúrdia.
Não obstante, estava feliz e de certa maneira sentia um verdadeiro alívio.
Sabia que não tinha feito nada de mal, por isso só poderiam estar ali para me socorrer. E é verdade sim, a polícia afinal não está cá apenas para passar multas e desvendar criminosos. “Proteger e servir” está afinal nos seus lemas. Ao lado do sovar e multar, mas tá lá.
– Ora viva… – Cumprimentando eu ainda dentro de água, e continuando – Epah desculpem lá isto mas o vento acabou mais cedo do que previa…
– Ora essa –
Disse um deles – A gente está cá mesmo para isto.
Deduzi imediatamente que teriam sido alertados por um dos espectadores em terra firme mas no entanto, ainda perguntei como tinham tido conhecimento.
– Recebemos uma chamada dum senhor a avisar que estava um rapaz a fazer windsurf e que tinha acabado o vento e viemos até aqui preparados precisamente para o socorrer ou ajudar no que for preciso.
– Epah, então vamos ver, agradecia imenso se me pudessem dar uma boleia pelo menos até ali às rochas, no final da Praia de S. Pedro, assim poderei levar o material pela água até terra.
– Tudo bem, mas então primeiro suba e vamos desmontar tudo aqui na lancha, que assim sempre seca um pouco.
E assim foi. Subi para a lancha sem muita dificuldade e tratei então de começar a desmontar o material mais uma vez.
Foi só em cima da lancha que consegui tirar o dito cabo do mordente. Talvez tenha sido o novo alento que a Policia Marítima tinha trazido. Já com a vela enrolada, e todo o material preso com cabos de maneira a não se perder nada, era agora a hora de dar algumas informações.
Os últimos raios de sol desapareciam no horizonte enquanto eu dava os dados do meu bilhete de identidade, e trémulo de frio assinava o relatório formal.
Com o sol já posto, a iluminação que havia agora provinha do céu de tonalidade avermelhada, de curta duração. O frio acicatava cada centímetro do meu corpo molhado, sem conseguir secar de maneira nenhuma. E sem qualquer controle sobre mim, começava a tremer à séria. Já não fazia ideia de como era, mas naquele momento só me recordava dos desenhos animados, do pessoal a bater os dentes de tanto frio.
– Epah, você tem alguém à sua espera na praia? – Perguntou um dos agentes.
– Er.. não não tenho. Vim sozinho.
– Epah, é que não sei se era melhor você vir connosco para Cascais, e telefonava a alguém para o ir buscar.
– … Sim podia ser mas, acho que era mais fácil se me pudessem deixar ali na praia, mesmo junto às rochas, não?...
– Eu sou teimoso p’a caraças… – Não sei se o problema é legal? Acaba aqui a vossa jurisdição? – Que pergunta idiota man… O conselho de Cascais estende-se até ao fim da Praia de Carcavelos…
O problema é que a maré já está bastante baixa… Mas deixa lá ver, eu conheço a S. Pedro. Tem um canal que é suficientemente profundo para o deixar quase em terra. Podemos ir por aí.
E embora os dois agentes não estivessem completamente de acordo em relação à decisão, fomos baixa velocidade rumo a terra.
A Ponta do Sal que parecia o Cabo das Tormentas, tão longe, tão intransponível, era agora um simples amontoado rochas inertes pelas quais passávamos sem qualquer dificuldade.
Abrandámos ainda mais a velocidade, e de sonda ligada, rumávamos perpendicularmente a terra, de frente ao bar restaurante Enseada.
Epah aqui já está óptimo amigo… – Dizia eu quase hipo térmico – Aqui já me consigo safar.
Mesmo assim continuou mais um pouco. Eu perdia-me de alegria no bater de dentes.
Pronto, vai ter que ser aqui mesmo. Agora tem que conseguir chegar a terra.
Amigos, nem consigo agradecer devidamente… Estou realmente muito agradecido. Peço desculpa pelo incómodo causado, mas é que não estava mesmo à espera que o vento acabasse. É que sem vento não se faz nada. Espero que seja a última vez que os veja numa situação semelhante…
– Deixe lá isso, tem é de ver se para a próxima tem alguém em terra que nos possa avisar em caso de perigo. Ou então ter à mão um telemóvel numa bolsa estanque para o mesmo efeito.
– Pois, eu sinceramente tinha uma, mas deixei de confiar, quando no outro dia uma bolsa supostamente estanque rebentou com o meu, deixando entrar água.
Bem – pondo o material na água – vamos lá molhar-nos outra vez…
Despedindo-me com boa cara e forte mas gelado aperto de mão, era agora a minha vez de entrar.
Mais um encontro gelado com as agulhas geladas que conseguiam vencer os 3.2 milímetros do fato de neoprene…
Segurando na proa da prancha, que carregava todo o material, conseguia encontrar as forças necessárias para poder nadar aqueles 7 metros até ter pé.
– Consegue nadar? Está tudo bem?... – Perguntavam os agentes.
– Es…Está t...tudo, eu aguento-me sim, obrigado – Respondi aguentando a agonia de ter que desviar um pouco das forças das pernas para os lábios e língua, e para o braço que acenava um sinal de OK.
Finalmente, apenas quando tinha a água pelos joelhos é que vi partir a lancha, após um aceno final de agradecimento e despedida.
Parecia mentira – terra firme…
Não posso dizer que foi como nos filmes. Quando o náufrago se atira para a areia seca, com o sol quente nas costas e a gritar – “I’m alibe!…” J
Foi às dezoito horas e dez minutos que olhei para o relógio no carro, para ter a noção a que hora tinha acabado aquela aventura.
E tinha acabado mesmo?
Ainda tinha de arrumar todo o material e trocar de roupa. E isto sim, seria uma aventura a sério, uma vez esquecida a bela da toalha em casa… J
Mas bá lá, tinha-me safado de dia, não iria ser problema à noite.
Recordo como se fosse ontem, que não tinha forças ou sensibilidade para desatar os nós que os agentes tinham dado às peças para não se perderem. É sabido que os lais de guia se desatam facilmente. Mas naquele caso, tive mesmo de recorrer aos dentes, e às falanges acima das unhas…
Foi só quando olhei para o horizonte, perceptível apenas por fracas luzes de presença de navios, e pelo farol de Cascais, que dei por concluída aquela minha aventura.
Que outras se seguiriam?
Quantas mais vezes teria de sofrer para poder windsurfar a sério?
Quantas mais vezes teria de ficar apeado no mar para perceber que se deve ter sempre alguém de sobreaviso em terra no caso de não conseguir voltar?
Que desventuras teria de sofrer ainda para perceber as manhas do vento, das marés e das ondas?
Quantas mais aventuras/ desventuras destas do Tico terei que viver para poder publicar um livro de crónicas?… Será que são dignas de serem publicadas, partilhadas com mais do que amigos e amigas?…
Quando irei ter uma nina comigo aqui no carro para me poder confortar e aquecer estas mãos geladas?…
E foi com estes pensamentos em mente que liguei o autorádio, mais uma vez usando o joelho do dedo indicador.
E ao som de “Sting – I’ll be watching you”, parti para casa, onde um banho quente, e a certeza de que mais um dia bem vivido esperava por mais uma das Crónicas do Tico.


Espero que tenha valido a pena a espera. Mas aí está. Esta valeu umas boas seis páginas de texto.
Um abraço a todo o pessoal e esperem brevemente por mais uma aventura e/ ou desventura do Tico, no blog do costume.

Tico


26.4.2004

O meu primeiro bolo...



As cenas do Tico
By Tico himself




"O primeiro bolo"


Sou da opinião de que na aprendizagem da maior parte do conhecimento há que, necessáriamente, passar pela experiência.
Constroem-se assim bases sólidas de conhecimento para a vida fundamentadas no método tentativa e erro.
Dito isto - creio que começo agora a perceber porque é que as mulheres não nos querem na cozinha...
É que... não tem nada a ver com o deixar a cozinha apinhada de material e apetrechos de culinária que se usaram para tentar fazer algo. Repito - tentar - pois as coisas que tentamos fazer não saem necessáriamente como as vemos na cabeça ou como as vemos na fotografia que acompanha a receita.
Houve uma, ou antes - várias lições importantes que aprendi com esta experiência - fazer bolos demora o seu tempo. Quanto mais complicado o bolo mais tempo leva e mais empenho requer.
Ora, pegando neste conceito... um dia destes hei-de ir falar com o pessoal da Polaroid...
Epah, acho que daqui a vinte anos eles vão arranjar uma solução para o problema - um gajo selecciona o bolo que se quer e pufff - aí está um bolo de iogurte impecável com cobertura de chantilly e cereja.

- Cereja? mas eu queria com morangos!...
- Deixe ver... Não, aquilo são morangos mesmo... estão é um pouco desfocados. Experimente tirar com melhor resolução.
E tente experimentar também seleccionar o tipo de papel correcto, neste caso um de qualidade fotográfica...

Ainda é dificil a um gajo fazer um bolo, man. Para mim ainda é difícil. Consigo atinar com algumas coisas mas a razão por que simplesmente não sai aquilo que quero, ainda não a alcancei. Sei que é uma questão de experiência, de continuar a tentar e tentar até finalmente chegar ao nível de qualidade aceitável. Ou seja - comestível e mínimamente agradável ao paladar...
E é sobre isto que quero falar, do meu primeiro bolo.
Eu disse bem - o meu primeiro bolo. Um bolo... Sim um bolo. O conceito bolo deduz em si próprio, a consistência e integridade físicas que o permitem tomar a forma da forma em que o levámos ao forno, e que mantém essa mesma integridade quando o tiramos da forma. É por essa razão que chamo a este processo que vos vou relatar como a feitura de um bolo. Porque saiu mais ou menos com a forma de bolo pois, a experiência antes desta, há uns bons anos atrás, deu algo entre um gelado e uma salada de frutas quando o que realmente estava a tentar fazer era um bolo... Bom, essa foi pa esquecer realmente.

Deixem-me proceder então, com o ponto que aqui me trouxe...

Há já várias semanas que eu andava a ser assolado pela ideia de querer testar-me na culinária. Mais especificamente em levar a cabo um bolo a sério.
Queria testar-me. Eu sabia que alguns pratos e receitas já eram do meu domínio. Estes vão desde ovos mexidos sem sabor a carvão até ao refinado e de que me orgulho sempre que o faço - esparguete com atum e natas. Man este então é do melhor que há. Um dia hei de convidar malta amiga p'ra vir testar este prato e ver se realmente tenho ou não razão em orgulhar-me desta receita. É que quando começamos a fazer as coisas sem precisar de cábulas ou medições é sinal que já dominamos a cena... (ou não?). Seja como for, esta confecção está claramente provada e sem falsas modéstias, que é do meu domínio.
Assim sendo, como gosto de desafios, decido pôr mãos à obra escolhendo dia e hora para tal feito.
Primeiro requisito - em todas estas experiências convém estar sozinho. Não tem de ser necessariamente assim com todas as experiências que se pretendam levar a cabo mas simplesmente, naquelas em que sabemos que podemos falhar redondamente convêm estar sozinho em casa para fazer desaparecer as provas caso sintamos realmente uma vergonha imensa. É por esta razão que eu ficava sempre danado nos trabalhos manuais da pré-primária - o que era suposto acabar num vaso para flores acabava sempre num cinzeiro... Pah é que era sempre!... Havia um caixa d'óculos que ria de caroço sempre que me via aquilo. O gajo acabou logo com essa mania assim que lhe disse que o pai natal não existia. Tinha uns 5 anos… Soube depois que chegou a casa e bateu nos pais... Enfim...
Ora bem, não tinha baunilha em pó para o bolo de yogurte, (ou pelo menos acho que não tinha porque o certo é que há uma série de pós e farinhas na dispensa da minha mãe que não estão rotulados), maneiras que vai de fazer um bolo de chocolate. Posso desde já dizer que eram as únicas opções disponíveis pois para seguir uma receita de culinária, tenho eu que a escrever, senão não percebo nada. E de momento só tenho essas duas.
As minhas receitas são muita loucas, são assim... especificadas, ou seja - o que para a comum e habituada cozinheira é o conceito claras em castelo, para mim é algo tipo:
- ...Claras em castelo - Separar as claras das gemas, deitar numa cena de plástico e bater com a máquina que tem aquilo a girar até ficar em espuma...
No meio disto tudo há um conceito que não preciso de especificar pois já sei o que significa - bater...


Vamos dispor então, os ingredientes necessários no balcão da cozinha:

- uma chávena de chocolate
- uma " de farinha
- uma " de óleo
- uma " de água quente
- uma " de açucar
- uma colher de fermento
- margarina
- leite

Ok, primeira dúvida: de que chávena se trata? Deduzi que fosse uma de pequeno almoço.
Fui à procura de uma chávena daquelas de pequeno almoço e não encontrei nenhuma. Deduzi que pudesse usar uma caneca.
Não sei quantas gajas que sabem fazer bolos aí desse lado já se estão a rir à parva. Mas acreditem que fiz tudo com boas intenções e com o mínimo de seriedade. Tá bem que desatei a rir com a cena do ovo (que supostamente nem sequer entra na receita...), mas de resto fiz tudo com a seriedade que o momento merecia.

Procuro então uma taça para deitar os ingredientes. Descubro que é melhor dar uso ao próprio... (eu não sei como é que aquilo se chama pah...)... a cena da batedeira Kenwood.
Deito o açucar, deito a farinha, deito o chocolate, deito... o óleo?

Onde é que tá o óleo?(Caso não saibam foi assim que nasceu aquele célebre personagem dos livros: "Onde está o Wally"...)
Não tinha óleo, man... Fui à dispensa ver se havia óleo mas parece que não. Porra, era dificil tar a separar o açucar da farinha caso eu quisesse desistir agora...
Mas espera!... A fritadeira... A fritadeira tem óleo!

Ok, tá usado mas ainda deve tar bom. Além disso ainda vai ser misturado com outras cenas... Não deve haver problema.
Estava um pouco escuro, e tinha bocados de rissol e chamuça que eu consegui ver atravéz da caneca de vidro que usei para medir tudo.
Vai de deitar no coiso da batedeira também.
Começo então a bater a mistela.
Dava a sensação de que estava a fazer tudo bem mas, não sei porquê, decidi rever a receita. A água quente...
Enquanto a água aquecia no microondas, fui batendo mais. Estava agora uma papa espessa e inequivocamente alérgica. Eu, que começo a espirrar quando como algo de chocolate, não precisava agora de provar a mistela. Só do cheiro já estava com o nariz a latejar.
Decido pôr a batedeira a trabalhar. A velocidade estava certa para a consistência que a massa assumia. Até lhe deitar a água...
Não posso garantir que o tecto não ficou salpicado, mas a parede branca, o meu polo e os meus corsários garantem-no sem qualquer sombra de dúvida...
Evidentemente, tive de baixar logo a rotação das pás, o que resolveu o assunto.
Achei que o que já lá estava na batedeira estava bem misturado, ignorando completamente se tinha juntado os ingredientes na ordem correcta... Mas achei que era hora de juntar o fermento.
Com a máquina sempre a trabalhar, fui buscar o fermento.
(Naquela altura...) Tinha ideia que a farinha Maisena era fermento, e assim a usei... Uma colher de fermento para dentro da batedeira. Mas teria feito bem? Não tinha posto exactamente no meio da mistura. Assim, vou de tentar raspar com um raspador de plástico, a parede do recipiente da batedeira, ainda com a batedeira a trabalhar...
Man - Não fosse o raspador - de plástico, ainda hoje estaria espetado um palmo acima do fogão, na parede de azulejo branco...
Mais um minuto a bater, e achei que a mistura não estava com a consistência que devia ter.
O que se deve fazer então para tornar a massa mais pastosa? Adiciona-se farinha.
Desta vez desliguei a máquina, levantei-lhe o braço mecânico e deitei a farinha a olho, aquela que achei suficiente para tornar a mistura mais espessa.
- Bem, acho que é tudo por agora - disse para mim - vou deixar isto a trabalhar devagar e besuntar a forma com margarina.
Não sei porquê sempre curti esta parte. Creio que é o que faço melhor no meio disto tudo. Deve vir da experiência de ter de barrar os cilindros do motor do Mini com óleo quando lhe tenho de mudar a junta.
Por aquilo que costumo ver fazer a minha mãe, estava em crer que tinha posto margarina suficiente.
Vai de deitar então a papa achocolatada na forma.
Epah... Deu gosto ver aquilo a escorrer. Pensava eu que ia sair dali um bolo enorme, belo e consistente.
Ok, a primeira parte já está. Agora basta apenas meter no forno, que ainda não estava aquecido.
- 240 graus durante uns 40 minutos deve chegar. Vamos lá tratar da cobertura... Vá lá ber: cobertura de chocolate - margarina, açucar, chocolate e leite. Ok, não deve ser difícil...
Eu disse que não devia ser difícil pois creio ser como o cimento - se um gajo vê que tá demasiado liquido, mete mais areia, se vê que tá demasiado pastoso mete mais água. Se vir que a pasta está a caír das paredes... chama-se um trolha para acabar o serviço...
Mas vá - mando um pouco de açúcar, mando uns 100 gramas de margarina, uma meia caneca de leite, e o chocolate.
Não sei porquê, aquilo não misturava muito bem.
Creio que se se tratasse de cimento, a margarina estava a comportar-se não como um torrão de areia de todo o tamanho que não se dissolvia por nada, mas sim como um padragu... um basalto que Deus ma libre, a fazer mossa na betoneira a gasóleo!...
E eu pensei pa mim:
- Ó Tico, então pensa lá o que é que tu fazes para tornar a manteiga mais fácil de barrar nas torradas?
É que a cena das torradas é um curtido. Eu não sei qual é a vossa experiência com manteigas, mas a minha vem desde pequeno, e acreditem quando digo - muito pequeno. É que as manteigas em barras, as de hoje em dia, pelo menos, são duras! (Devem ser feitas com posters da Samantha Fox nas paredes da fábrica...)

Aquela cena... epah: vocês têm uma torrada de pão de carcaça, vão pôr a manteira de de barra na torrada, e o que acontece é que o mais certo é estraçalhar a torrada antes de conseguirem sequer que a manteiga adira à torrada.
As saudades que tenho da manteiga Planta, por ser muito suave e pastosa, fácil de barrar. E na sua ausência, aprendi uns métodos bem porreiros para fazer as vulgares manteigas em barra mais suaves. Ao principio era pôr a manteigueira por cima da própria torradeira, enquanto se faziam as torradas. Vim a descobrir as diferenças entre plásticos termomoldáveis e cerâmica...
Outro método, e o que aconselho vivamente, é o meter a manteigueira uns 15 a 25 segundos no microondas. Mais do que isso, e têm de servir-se da manteiga com um copo...
Aí estava a solução - tinha de derreter a margarina.
Mas nesta altura já estava toda suja com o chocolate e espalhada em vários bocados... Olha, vai de meter toda a cena da batedeira dentro do microondas.
Dois minutos devem ser suficientes.
Enquanto aquilo derretia, tentei ver se o bolo crescia dentro do forno. Ainda não.
- Ok, tens tempo.

Quando tiro o balde ou o recipiente ou... que porra - aquela cena da batedeira - descubro que a margarina não só não tinha desaparecido por completo, fundindo-se com a mistela liquidificada, como se tinha espalhado em mil pequenos pedaços.
Ao ver aquilo, fiquei eu como esperava que a margarina tivesse ficado:..."fundido"...

Decidi juntar mais chocolate, a ver se tornava aquilo mais pastoso.
Não resultou.
Decido então tirar um pouco do liquido, vazando-o para a caneca sagrada. O santo gral, vamos lá.
Deitando mais chocolate, vi que realmente estava a resultar, estava a ficar em forma e papa. Essa constatação foi logo a seguir à sessão de espirros pelo aroma do chocolate no ar...
No entanto ainda não era suficiente. Teria de juntar algo para tal.
Farinha? Usa-se farinha na cobertura? É melhor não experimentar...
Ovos? Hum... Creio que não faz mal experimentar um.
Consegui separar a gema das claras sem a desfazer. E fiquei feliz com isso. Não caí no erro de desaproveitar as claras, pelo que as deitei num frasco que havia no frigorífico para o efeito.
E assim vai de deitar a gema na porra da cena da batedeira que ainda não sei o nome.
(Se alguém aí desse lado souber, escrevam a dizer, ok?)
Bem... Deixei-me contar-vos o percurso da gema de ovo...
Supostamente ciente do que estava a fazer, deitei a gema naquela cena.
Ao que parece, a pá da batedeira apanhou-a a jeito... Man, eu não tinha feito muita merda há pouco tempo. Eu até me estava a portar bem. Por que razão estaria a ser castigado desta maneira? A sério... Eu tou a curtir uma e uma só nina, eu tou a tentar compor a minha bida, tou a ver se deixo as asneiradas, e tou a fazer windsurf muito melhor que antes sem sequer insultar Deus e os quatro ventos... A sério, estava a correr bem.
Mas vamos lá ver, eu preciso que tenham agora uma boa capacidade de imaginação, vamos fazer outra vez uma daquelas cenas em câmara lenta que costumo fazer:
- Deito a gema para aquela cena pela borda (não estejam preocupados em saber o nome do raio da peça e imaginem uma porra duma tigela de plástico branca do lado de fora, e castanho-bosta do lado de dentro); A gema é apanhada por uma das pás; leva uma sapa do caraças e não só consegue não se desfazer como desafia a gravidade ao descrever um arco perfeito... indo espetar-se na mesma merda de sitio onde o raspador tinha batido, que eu tinha andado a limpar minutos atrás!...

Enfim... só treta...
Adiantando-me no tempo, como fazem os cozinheiros na televisão, vamos ver como está o meu bolo já no fim do tempo - no fim da dilatação, digamos assim...
Tiro o bolo, e vejo que não tá assim tão mau como parece. Tá é mais escuro na extremidade que no centro e, vá lá, consegui fazer um bolo que cresceu pouco mais de 2 cm de altura, na parte mais alta...
Vamos tentar tirar o bolo da forma, então.
Isto é importante - tirar o bolo da forma. O pessoal da Lua de Mel sabe o que é que tá a fazer. Os bolos são bonitos é fora da forma, apresentados ao público nas vitrinas e com enfeites. Se quisessem poupar tempo, serviam os bolos da própria forma!... Eu não tinha bem essa preocupação. Não ía expôr o bolo numa vitrine. Mesmo assim tento tirá-lo e... vejo que seria mais fácil tirar um prisioneiro da Cadeia de Vale de Judeus que tirar este bolo dali sem o estragar...

Ok, não vale a pena tentar mais. O raio do bolo não sai mesmo. Acreditem que tentei tudo. Deste dilatar a forma em todos os sentidos, a despegá-lo das paredes com uma faca, ou bater no fundo com a forma ao contrário.
Nada...
Nada o tirava dali e parece que por ali ía ficar até a última alma caridosa raspar a última fatia.
- Mas espera, ainda falta a cobertura...
Vai de deitar a pasta mais liquida que própriamente papa, em cima do bolo, ainda dentro da forma.
Man... Aquilo era um bolo, eu sei que até não estava muito mau. Estava comestível... Até eu decidir pôr a cobertura. Até era capaz de ser comestivel se ao menos tivesse posto apenas um pouco da cobertura. Mas boca... Vai de gastar tudo o que tava na cena da batedeira. (Alguém aí já sabe o nome daquilo?...)

Bem, após uma breve sessão de fotos para provar que passei mesmo por tudo isto, ficava mal se não servisse de primeira cobaia para testar o primeiro "Bolo-Mousse de Chocolate" que alguma vez fizera.
Realmente, era como pensava por dentro - haviam partes que não tinha sido demolhadas pelo viscoso liquido amargamente achocolatado que realmente estavam boas. Mas essas partes representavam tão-somente uns escassos 5 a 10% de todo o bolo.

No fim de tudo, lá tentei arrumar a cozinha. Não pude deixar de me sentir um pouco de frustração mas porém, também sentia uma certa dose de aprendisagem. Sabia que tinha sido a primeira vez, e que muito pessoal já devia ter passado por isto também.
Prometo continuar a lutar, prometo continuar a tentar e prometo tentar ser tão bom a fazer bolos como a... a... sei lá mas prometo!... =)

Tico

7.4.05
18h03